A tragédia Yanomami e a melhor resposta possível do Direito Penal

 Os advogados André Damiani e Vinícius Fochi foram destaques no Estadão

No Direito Criminal, quem tudo quer geralmente nada alcança. Ao norte do país, mais precisamente entre os estados do Amazonas e Roraima, habita o povo Yanomami, que sofre há anos com o avanço desenfreado do garimpo ilegal na região.

Para além da destruição florestal e poluição dos rios, principais fontes de subsistência da população local, o povo indígena é alvo de crimes bárbaros: homicídio, tortura, estupro de crianças, exploração sexual infantil, dentre outras atrocidades.

Como parte da resposta, o atual ministro da Justiça e Segurança Pública determinou que a Polícia Federal apure suposto crime de genocídio e omissão de socorro.

Ocorre que a imputação pelo crime de genocídio é de comprovação trabalhosa, em que pese este rótulo fomentar generosa repercussão nacional e internacional. Nessa modalidade, entretanto, há risco efetivo de que a maioria dos responsáveis nunca seja alcançada pelo Direito Penal.

De saída, para tipificação do crime de genocídio é necessário comprovar que o agente agiu com o dolo específico de “destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, nos termos do artigo 1º, da Lei 2.889/1956.

Além disso, é preciso demonstrar a perfeita causalidade entre a conduta do agente, comissiva ou omissiva, e o resultado. No caso da omissão, se faz necessário, ainda, identificar um dever legal atribuível ao delinquente, cujo desrespeito ensejou o resultado criminoso.

Bem por isso, considerando as informações já coletadas e a constatação de que o Poder Público dispõe de minguados recursos para a elucidação dessa tragédia, parece central a escolha da estratégia mais eficaz: os órgãos de persecução devem focar na responsabilização dos crimes de comprovação mais óbvia, tais como o garimpo ilegal, porte ilegal de arma de fogo, homicídio, estupro, dentre outros, transmitindo uma resposta célere à sociedade e, principalmente, ao povo Yanomami.

Aliás, a título de comparação, a pena de cadeia prevista para o crime de genocídio, na modalidade “matar membros do grupo”, é a mesma prevista para o crime de homicídio qualificado, ou seja, reclusão, de 12 a 30 anos.

Nada contra a apuração concomitante dos crimes de genocídio e de omissão de socorro. Todavia, no curto prazo, esta não deve ser a prioridade acusatória, uma vez que o genocídio do povo Yanomami será provado, com muita sorte e diligência, apenas contra uma pequena parcela dos criminosos.

Uma breve leitura das mais recentes e sangrentas páginas da História mundial reforça a necessidade de uma abordagem objetiva e pragmática. O genocídio ocorrido em Ruanda, em 1994, serve como alerta. No episódio, cerca de 800 mil pessoas foram massacradas em apenas 100 dias.

Buscando-se responsabilizações, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, por meio da Resolução 955, criou o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, cuja competência abarcava, dentre outros delitos, o julgamento pelo crime de genocídio. Durante quase 21 anos de funcionamento (1994-2015) do Tribunal, 93 pessoas foram indiciadas pelos fatos ocorridos em Ruanda, mas apenas 61 foram condenadas.

Mesmo havendo condenações perante outras Cortes — a execução pública de 22 pessoas em Ruanda é prova disso — o número de responsabilizados pelo episódio é inexpressivo quando comparado à magnitude dos fatos criminosos sobejamente comprovados no assassinato de quase um milhão de pessoas.

Não bastasse o número irrisório de condenados, os julgamentos prolongaram-se por décadas; tudo a fortalecer o sentimento de injustiça e impunidade.

Para driblar semelhante destino, deve-se escolher com técnica a utilização racional do arcabouço jurídico disponível, levando-se em conta os efeitos sempre negativos da prestação jurisdicional tardia.

Fato é que o manejo do Direito Penal jamais poderá renegar a segundo plano uma análise estratégica quanto à eficiência probatória da acusação, sob pena de permitir a impunidade de centenas, talvez milhares, de infratores. Vale lembrar que, muitas das vezes, um “arroz com feijão bem-feito vende mais que caviar”.

*André Damiani, sócio-fundador do Damiani Sociedade de Advogados, é especialista em Direito Penal Econômico e LGPD

*Vinícius Fochi é advogado criminalista no Damiani Sociedade de Advogados

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