O sócio fundadador André Damiani e o advogado Vinícius Fochi foram destaques no JOTA
Em outubro de 2021, foi publicada a Lei 14.230/2021, que alterou substancialmente a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992). Entre as principais modificações feitas estão a exigência de conduta dolosa por parte do servidor para a configuração do ato de improbidade e a estipulação de novos prazos prescricionais.
Em relação ao primeiro ponto, a Lei de Improbidade admitia originalmente que o ato fosse praticado mediante dolo ou culpa. Com a alteração, o novo diploma prevê, expressamente, a necessidade de ato doloso para configuração da improbidade.
Quanto aos novos prazos prescricionais, o novo diploma estabeleceu o prazo de oito anos para prescrição, contados da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência. Ademais, também passou a prever a possibilidade da prescrição intercorrente, cujo prazo será de quatro anos, ou seja, metade do prazo previsto anteriormente no caput.
Ocorre que a inovação legislativa não previu, expressamente, um regime de transição, ou seja, não estipulou como as mudanças incidiriam em nosso ordenamento jurídico, causando uma grande controvérsia acerca da aplicação retroativa das alterações.
A problemática chegou à apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF) por meio do ARE 843989/PR. Por 7 votos a 4, o Supremo decidiu pela irretroatividade da nova Lei de Improbidade Administrativa nos processos que já transitaram em julgado, tanto em relação aos atos culposos quanto aos novos prazos prescricionais.
Já em relação aos feitos em andamento nos quais há imputação de ato de improbidade, o STF acompanhou, por maioria, o voto do relator Alexandre de Moraes, que, de forma muito técnica, entendeu pela não “ultratividade” da norma revogada, ficando a cargo do juiz da causa, analisar caso a caso se houve dolo ou não na conduta do agente.
Isso porque os ministros, por maioria, entenderam que as ações de improbidade são de natureza civil, ou seja, não são regidas pelos princípios norteadores do Direito Penal, entre os quais está o da retroatividade da norma penal mais benéfica ao réu.
É justamente sob esse fundamento que o STF interpretou de maneira restritiva o artigo 5, inciso XL, da Constituição Federal, decidindo que a Carta Magna prevê a retroatividade da norma mais benéfica apenas nos casos de natureza penal, não alcançando outras áreas do Direito.
Todavia, este não nos parece ser o melhor entendimento. Conforme divergência apresentada, parte dos ministros defendeu a aplicação retroativa da norma mais benéfica aos acusados, em razão do inequívoco caráter sancionador da lei.
Isto é, em razão da similitude entre o Direito Sancionador Administrativo e o Direito Penal, seriam aplicáveis àquele os princípios deste.
Vale ressaltar que, nas palavras do ministro Gilmar Mendes, “as sanções reservadas aos atos de improbidade são graves e em grande parte equiparadas àquelas atreladas à prática de crime comum, conforme evidenciado pelo próprio artigo 15 da Constituição Federal, que em seu inciso III atribui à condenação criminal transitada em julgado a mesma consequência, no tocante aos direitos políticos, daquela atribuída às condutas ímprobas”.
Ainda, o entendimento firmado contraria julgado do próprio STF, que, nos autos do Mandado de Segurança 23.262/DF, reafirmou que o princípio da presunção da inocência (inciso LVII, do artigo 5º da Constituição), de natureza eminentemente penal, aplica-se aos processos administrativos sancionadores.
Certamente a recente decisão da Suprema Corte irá gerar consequências práticas, interferindo diretamente nas eleições 2022.
Imagine-se, por exemplo, que nas eleições de outubro tenhamos dois pretensos candidatos acusados da prática de ato de improbidade culposo, cometidos na mesma data.
Contudo, um dos processos foi mais célere e já alcançou seu trânsito em julgado, havendo condenação definitiva anterior ao dia 21 de outubro de 2021; esse candidato estaria impedido de se candidatar. De outro lado, o segundo processo contou com a morosidade do Judiciário e ainda tem recursos pendentes de análise. Este segundo candidato terá seu processo extinto – uma vez que não mais existe a figura culposa – e, consequentemente, sua candidatura validada.
É por tal razão que o entendimento firmado pelos ministros irá interferir na corrida eleitoral, havendo tratamento diferenciado para candidatos acusados de improbidade administrativa, na modalidade culposa, mesmo que tenham enfrentado acusações idênticas em períodos equivalentes.
Já em relação aos novos prazos prescricionais, os ministros entenderam, por maioria, que são dispositivos de natureza processual, devendo ser aplicados a partir da data de sua publicação, não retroagindo aos feitos pretéritos.
Muito embora parte da doutrina e da jurisprudência defenda a natureza processual dos prazos prescricionais, seus efeitos são produzidos no campo do direito material, uma vez que limitam o poder punitivo/sancionador do Estado: devem, portanto, retroagir.
Por sua vez, em relação ao prazo da prescrição intercorrente, ficou estabelecido que esta passará a vigorar apenas em relação aos feitos em andamento, tendo como prazo inicial para contagem a data de publicação da Lei 14.230/2021, ou seja, 21 de outubro de 2021.
De maneira acertada agiram os ministros, uma vez que a prescrição intercorrente é modalidade específica de prescrição, cujos contornos e finalidades a diferenciam da prescrição geral, estando atrelada à garantia constitucional da duração razoável do processo.
Assim, a prescrição intercorrente surge como fenômeno eminentemente processual, diferenciando-se da prescrição geral pelo seu prazo, pela contagem e pela finalidade.
Dessa forma, com o objetivo de coibir abusos no poder punitivo/sancionador do Estado, a nova Lei 14.230/2021 trouxe maior segurança jurídica para os administradores públicos que, muitas vezes, eram acusados e condenados de maneira genérica e leviana por erros de gestão, mas não por má-fé. É bom lembrar que o gestor inepto é diferente do gestor corrupto.
© Copyright Damiani Sociedade de Advogados