Ausência previsão legal para a quebra do sigilo telemático das comunicações privadas

É certo de que os dados de registros e de comunicações pessoais são protegidos pelo direito fundamental à privacidade, antevisto no artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal. Também é certo que todo e qualquer afastamento de sigilo constitucional depende de previsão legal, definindo as hipóteses e as circunstâncias autorizadoras da relativização da garantia constitucional.

Dito isto, não é de hoje que nos deparamos com inúmeras decisões judiciais autorizando a quebra de sigilo telemático das comunicações privadas armazenadas por provedores de conexão e de aplicações de internet, as quais guardam consigo todo o histórico de e-mails e diálogos pretéritos, ora com fundamento na Lei de Interceptações Telefônicas (Lei nº 9.926/1996), ora com espeque na Lei nº 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet.

Todavia, no tocante a Lei de Interceptações Telefônicas (Lei nº 9.926/1996), esta aplica-se tão somente às empresas prestadoras de serviços de telecomunicações, e não às provedoras de conexão e de aplicações de internet, as quais estão sujeitas a um enquadramento legal e regulatório totalmente distinto.

Ainda, oportuno enfatizar que a “interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática”, prevista na Lei 9.296/96, não se compara a quebra de sigilo do conteúdo das comunicações privadas de todo e qualquer meio abrangido pela internet.

É dizer, o disposto na Lei 9.296/96 aplica-se tão-somente à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática, e não ao acesso amplo e irrestrito ao conteúdo integral armazenado de uma conta de e-mail e/ou o acesso ilimitado ao conteúdo das mensagens trocadas entre um sujeito e todos os seus interlocutores num aplicativo de mensagens, incluindo-se nestes, todos os documentos anexáveis como imagens, arquivos, áudios e vídeos.

Por sua vez, em consulta ao diploma normativo do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), verifica-se que o regime de proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas está disciplinado nos artigos 10 a 12, os quais prescrevem obrigações aos provedores de conexão e de aplicações que estão relacionadas tanto ao comando de guarda e tratamento quanto ao regime de disponibilização de dados.

Do exame de tais dispositivos, depreende-se que o único dispositivo que prevê alguma obrigação de disponibilização de dados é o artigo 10, sendo certo que o seu parágrafo 2º expressamente dispõe que “o conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7º.”

Noutras palavras, é ululante que o parágrafo 2º, do artigo 10, da referida norma, não é autoaplicável, visto que carece de regulamentação. Afinal, como bem observado pelo Ministro Gilmar Mendes em decisão monocrática proferida na Medida Cautelar em Mando de Segurança nº 38.189, “ao prever que o conteúdo ‘poderá’ (e não deverá) ser disponibilizado, o Marco Civil da Internet remete o dispositivo a uma eventual regulamentação futura (“que a lei estabelecer’)”.

Assim é que, na ausência de previsão legal e, ainda, consentânea com o contexto tecnológico vigente, qualquer autorização judicial pela quebra de sigilo das comunicações privadas armazenadas nos e-mails, nuvens, aplicativos e de tudo o mais que possa ser extraído do acesso à internet, viola frontalmente a proteção dos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade, sendo, portanto, ilegal.

O mesmo Estado que aparelha e moderniza os aparatos investigativos, disponibilizando, inclusive, os melhores e mais modernos softwares e ferramentas de análise e extração de dados, deve, necessária e precipuamente, editar leis que acompanhem o avanço tecnológico, e, acima de tudo, não permitir e jamais legitimar devassas desmedidas, desastrosas e desproporcionais na vida privada e na intimidade dos cidadãos, como as que vêm ilegal e recorrentemente acontecendo, representativas de uma prospecção reversa de ilícitos sobre todo o histórico de vida de um sujeito, numa vedada e imoral bisbilhotice perseguidora.

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